2006 - Da Janela Que Dá Para O Cristo


Da janela que dá para o Cristo eu via tudo e mais um pouco. Eu via o Rio, as pessoas, as ruas e os rios. Na contradição do povo eu via o Rico andando ao lado do Pobre e nem um minuto de seu tempo, com ele, gastando. Eu via pessoas com todo o tempo do mundo, gastando seu tempo em não fazer nada. Eu via turistas subindo o Cristo com toda a presa de quem não tem nada a fazer. Enquanto isso, os trabalhadores, apressados em seus carros, buzinavam em desespero, e nos ônibus os motoristas apressavam-se, enquanto os passageiros se entretinham com o rápido passar das ruas.
Nunca pensei que, um dia, eu fosse me cansar de olhar por aquela janela. Todo dia eu acordava, e antes mesmo de fazer qualquer outra coisa, eu parava em frente a ela e sentia a luz do sol que subia. Subia e ficava mais forte e eu, então, não mais agüentava olhá-la e virava meus olhos para o chão, lá para baixo, lá para a rua e via, assim, as pessoas com sono que andavam. Vez ou outra eu ouvia buzinas àquela hora, e quando ouvia era aquela rápida, seguida de uma freada brusca, do tipo desesperada. Geralmente, quando tal buzina soava, alguém se machucava, geralmente nada grave, mas podia ser fatal.
Eu saia de casa pela amanhã e voltava na hora do almoço, e me sentia feliz assim, já que não mais a luz do sol machucava meus olhos. A essa hora o sol já havia passado da minha janela. Eu sentia seu calor, ele iluminava as ruas e tudo em volta, mas ele não mais queimava minha vista e eu adorava que fosse assim.
Se pela manhã as pessoas passavam dormindo, na hora do almoço vinha a graça maior. As crianças saiam da escola correndo, os adultos andavam pela rua quase tropeçando nas crianças. Carros nas ruas eram poucos àquela hora, mas todos procuravam uma coisa em comum; uma boa mesa com um bom prato de comida. Eu saía um pouco da janela, almoçava e descansava um pouco. Ao voltar à janela, voltavam também as pessoas, mais felizes e mais "pesadas".
Pela tarde eu ficava em casa, e tudo o que eu fazia era ficar atrás daquela janela. Eu via tudo, vi até assalto. Na verdade não um, mas vários. Em um levou-se um carro, no outro uma vida. Vi também o seqüestro de um cachorrinho que nada tinha de indefeso. O cachorro foi pego por uma criança, na rua. Um menino ofereceu-lhe comida e ele foi correndo, entrou numa casa e por lá ficou. Seu dono, um outro menino, uma criança também, ficou desesperado ao perceber que seu cachorro não estava mais ao seu lado, pôs-se a chorar, chamou pai e mãe e o cãozinho quando ouviu os gritos desesperados de seu dono, pôs-se a latir e a choramingar. O ladrãozinho tentou fazê-lo parar batendo-no com um jornal enrolado, o cachorro danado e brigão, mordeu a mão do ladrão e logo então a mãe do menino chegou em casa e vendo seu filho, deixou o cachorro fugir. Na verdade ela quase chutou o vira-lata para fora de sua casa. O cachorro vendo-se livre correu pela rua, correu até encontrar seu dono ainda chorando em desespero. Ao ver o cãozinho o menino sorriu, mas o cãozinho estava louco e mordeu também a mão do menino. Mordeu e fugiu. Nunca mais o vi, nem ele, nem o ladrão, nem o menino.
Havia tardes melhores, é claro. Em uma até teve um casal que brigou feio, ali mesmo, no meio da rua. A menina gritava alto, algumas palavras até eu ouvi: "Você sabe...Eu?...Nunca...O quê?..Você é louco!" O menino, gritava mais alto ainda:"Você está é ficando maluca...Então você nunca disse...E nunca fez nada disso...Eu te amo! Eu te disse...me conta o que houve...Eu te amo!" Parecia loucura, conversa meio sem nexo, mas o lindo foi quando ela virou e foi embora e ele ficou lá, parado por um tempo, depois virou e correu pro lado oposto ao dela e pouco tempo depois voltou, correndo com um enorme buquê de flores nos braços. A menina já devia estar longe, ele deve ter corrido bastante, mas o legal é, que um tempo depois eles dois voltaram abraçados; ela, ele e o buquê. Casaram-se um tempo depois. Ela está grávida, um barrigão enorme. Vez em quando os vejo passar juntos, felizes, sorrisos de orelha a orelha. Vez em quando ele passa com flores pra ela. Mas o vi, outro dia, com flores e outra menina. Pode ser que fosse amiga...
Certa vez houve um acidente. Estava escuro porquê chovia. Uma moto bateu num ônibus, o motorista não se machucou, a moto não amassou e nem mesmo o ônibus. O motociclista ficou um tempo no chão e os passageiros achavam que ele estava morto. Quando ele, de repente, levantou ele ria muito. Estava ainda meio tonto, mas ainda assim ria. Ele olhou a moto e o ônibus que estavam inteiros, o motorista do ônibus estava bem e os passageiros idem. Olhou para o motorista e levantou o polegar "Valeu, amigo!" Subiu na moto e partiu, ainda rindo. Coisa de louco!
A noite começava sempre com um engarrafamento monstruoso lá pelas seis da noite. Pela rua inteira e por todas as outras ruas os carros pareciam parados, estacionados no meio da rua. O estresse de cada motorista dava um tom cada vez pior aos engarrafamentos e era nessa hora que os pequenos acidentes aconteciam. Eu nunca vi, exatamente, um, somente os carros com os faróis quebrados ou sendo rebocados. Às oito as coisas começavam a voltar ao "normal". O legal era que as pessoas se estressavam mais ainda porquê ficavam todos naquele "para, continua, para, continua". Tinha um sinal fechado e já se formava um mini engarrafamento e depois andava e parava de novo. Depois de meia hora tudo ficava bom. Os carros só paravam no sinal e mesmo assim nem era por muito tempo. Alguns motoristas corriam muito. Pedestres depois das nove era quase milagre ver, mas às sete eles ainda estavam lá, correndo para pegar o ônibus ou apenas para chegar em casa.
Era engraçado ver como eles saiam pela manhã e como voltavam à noite. Eu via a diferença em mim quando saia para ir a escola; uniforme e cabelos impecáveis, dentes perfeitamente escovados e a mochila arrumadinha. Quando eu voltava, meus cabelos estavam um ninho e presos num coque muito mal feito. Minha blusa toda amassada, minha calça imunda porque eu sentava no chão da escola o tempo todo, fosse recreio ou fosse aula. A boca estava um doce de tanta bala que eu comia, e a mochila voltava toda torta nas costas já que ao final da última aula o mais fácil era jogar o material dentro dela. As crianças durante o dia, quando voltavam da escola não eram muito diferentes de mim, mas é claro que sempre tinha um menino que voltava ou com lama nas roupas ou com a roupa toda rasgada. Os adultos eram diferentes, quero dizer, as mulheres. Elas saíam de casa impecáveis e voltavam com um ou dois fios de cabelo fora do lugar. Os homens saíam, em sua maioria, bem vestidos, mas eram muito poucos os que voltavam ainda assim. Na volta, as blusas suadas, os cabelos desengonçados e o desodorante, vencido!
As piores coisas eu vi acontecer durante a madrugada. Foram poucos os dias que fiquei acordada e olhei por aquela janela após a meia-noite, mas as coisas que vi, apesar de poucas, foram aterrorizadoras. Um dia eu lia um livro e cansei meus olhos com suas pequenas letras, parei de lê-lo e olhei para o horizonte. Lá fora, o Cristo, que ainda não tinha tanta luz como hoje, do mesmo modo brilhava. Seus braços abertos como se quisessem me abraçar. Meus olhos se expulsaram dele tão rápido como um cometa se desprende do céu no momento em que, sem querer, um carro invadia um posto de gasolina, atropelava uma menina e capotava, parando quase que perfeitamente estacionado no meio-fio. Foi interessante, no mínimo, ver o desespero do motorista, com seu rosto sangrando, ao sair do carro, mal vendo seu próprio estado, mas correndo para ver a menina, a qual, as poucas pessoas que passavam na rua, pararam para tentar ajudar. O homem, desesperado, agachou-se perto dela e pediu espaço. Sem nem tocá-la verificou se respirava, se tinha ainda pulso e ao ouvir a ambulância ao longe, se acalmou. Aquele homem era um médico, 30 anos de profissão, suicidou-se na cadeia àquela noite. A menina morreu no hospital. Os dois deixaram famílias em desespero. Àquela hora, nada era seguro.
Num outro dia, muito tempo já passado da meia-noite, eu não conseguia dormir e mais uma vez me dirigi à janela. Com medo do que veria prendi meu olhar em uma praça. Eu achava que lá nada ruim aconteceria. Estava muito enganada. Da primeira vez vi um roubo, da segunda uma tentativa de estupro, da terceira vez havia um corpo embaixo de um dos bancos. Podia ser apenas um mendigo, mas cismo em pensar que era realmente um corpo. Era estranho ver tudo o que eu via e eu me assustava com isso, cada dia mais um pouco. Ao passar de meses as pessoas se tornavam mais agressivas, os carros mais rápidos e mais perigosos. Os roubos, como os anos, ficavam mais intensos, e ficavam mais descarados e mais violentos. Eu não mais agüentava aquilo.
Um dia cansei daquela desgraça e cobri minha janela com uma cortina. Só deixei aberto um pedaço pequeno para que eu visse o cristo quando deitasse na minha cama. É muito bonito ver o céu mudando enquanto o cristo continua parado, ainda como se quisesse me abraçar.

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